GENDERQUEER: gênero e sexualidade homo, trans, 
não-binária e/ou genderfluid

APRESENTAÇÃO
A presente reportagem, produzida como projeto final para a disciplina Gênero, Sexualidade e Redes Sociais, ministrada pelo professor Renato Contente na Universidade Federal de Pernambuco, tem como objetivo mostrar as vivências de pessoas que se identificam como não-binárias ou ainda genderqueer; ou seja, que não se definem no binarismo de gênero estabelecido histórico e culturalmente pela sociedade, o de homem e mulher. Toma-se esse material como um dos passos para a disseminação do conhecimento acerca dessa vivência, que ainda não é tão amplamente discutida, nem mesmo nos espaços de produção do saber.

Para um entendimento mais aprofundado e proveitoso da reportagem, desenvolvemos um glossário com os termos mais usados e que dizem respeito ao universo das questões de gênero e sexualidade aqui abordadas. Tal glossário foi baseado no e-book — disponibilizado gratuitamente na internet — “Orientações sobre Identidade de Gênero: conceitos e termos — Guia técnico sobre pessoas transexuais, travestis e demais transgêneros, para formadores de opinião”, organizado por Jaqueline Gomes de Jesus.

GLOSSÁRIO
Binarismo: Denominado também como “dimorfismo sexual”, crença construída ao longo da história da humanidade, em uma dualidade simples e fixa entre indivíduos dos sexos feminino e masculino.
Bissexual: Pessoa que se atrai afetivo-sexualmente por pessoas de qualquer gênero.
Cisgênero: Conceito “guarda-chuva” que abrange as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento.
Gênero: Classificação pessoal e social das pessoas como homens ou mulheres. Independe do sexo e orienta papéis e expressões de gênero.
Heteronormatividade: Crença na heterossexualidade como característica do ser humano “normal”. Desse modo, qualquer pessoa que saia desse padrão é considerada fora da norma, o que justificaria sua marginalização.
Heterossexual: Pessoa que se atrai afetivo-sexualmente por pessoas de gênero diferente daquele com o qual se identifica.
Homossexual: Pessoa que se atrai afetivo-sexualmente por pessoas de gênero igual àquele com o qual se identifica.
Identidade de Gênero: Gênero com o qual uma pessoa se identifica que pode ou não concordar com o gênero que lhe foi atribuído quando de seu nascimento. É importante frisar que identidade de gênero e vivência sexual são dimensões diferentes e que não se confundem.
LGBTQ: Acrônimo de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Queer. A sigla pode variar entre os países.
Nome Social: Nome pelo qual as travestis e pessoas transexuais se identificam e preferem ser identificadas, enquanto o seu registro civil não é adequado à sua identidade e expressão de gênero.
Orientação/Vivência Sexual: Atração afetivossexual por alguém. Vivência interna relativa à sexualidade.
Queer ou Andrógino ou Transgênero ou Gender-Fluid: Termo ainda não consensual com o qual se denomina a pessoa que não se enquadra em nenhuma identidade ou expressão de gênero.
Sexo: Classificação biológica das pessoas como machos ou fêmeas, baseada em características orgânicas como cromossomos, níveis hormonais, órgãos reprodutivos e genitais.
Transgênero: Conceito “guarda-chuva” que abrange o grupo diversificado de pessoas que não se identificam, em graus diferentes, com comportamentos e/ou papéis esperados do gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento.

O QUE NA PRESENTE reportagem chamamos de queer, em termos tanto políticos quanto teóricos, segundo o sociólogo Richard Miskolci (2016), surgiu enquanto crítica à ordem sexual heterossexual, nos Estados Unidos, na década de 1960. Possivelmente associado tanto à contracultura quanto às demandas dos movimentos sociais em prol da aquisição dos direitos civis da população negra norte americana, das reivindicações feministas da chamada “segunda onda” e do então movimento homossexual tradicional, o movimento queer vem para chamar a atenção de gays e lésbicas para a seguinte questão: mesmo se eles e elas adotassem características e práticas heteronormativas, continuariam sendo alvo de abjeção, repulsa e desprezo social, devido à sua condição sexual.

Quanto à distinção entre o movimento homossexual e o movimento queer, é possível afirmar que enquanto o primeiro apontava para adaptar os homossexuais às demandas sociais, de modo a incorporá-los à sociedade, o último preferia enfrentar o desafio de mudar a sociedade de forma que ela lhe fosse aceitável. Assim, enquanto o movimento mais antigo defendia a homossexualidade aceitando os valores hegemônicos, os queers criticavam esses valores, mostrando como eles engendram as experiências da abjeção, da vergonha e do estigma. O queer, portanto, não é uma defesa da homossexualidade, mas sim a recusa dos valores morais violentos que instituem e fazem valer a linha da abjeção, essa fronteira rígida entre os que são socialmente aceitos e os que são relegados à humilhação e ao desprezo coletivo.

Se dentre os precursores da Teoria Queer no mundo o pensador francês Guy Hocquenghem, com sua Le désir homossexual (O desejo homossexual), de 1970, e a antropóloga feminista Gayle Rubin, com seu ensaio especial Thinking Sex (Pensando sobre Sexo), de 1984, figuram no hall dos pioneiros teóricos a realizar estudos sobre tal questão, no Brasil, a pedagoga Guacira Lopes Louro é quem encabeça a primeira safra dos estudos queer já realizados em terras tupiniquins, com seu Teoria Queer: uma política pós-identitária para a educação”, de 2001.

O mundo queer busca cada vez mais espaço na sociedade hoje, e vem alcançando visibilidade e representatividade com grande êxito. Diversas personalidades, tanto nacionais, quanto internacionais, fazem história no que tange às questões de gênero e sexualidade, acabando, assim, por influenciar e abrir os olhos daqueles que se identificam com determinadas identidades da sigla LGBTQ.

Até chegar ao patamar atual, que ainda assim é repleto de perseguições e preconceitos, personalidades históricas marcaram as lutas que, hoje, fazem toda a diferença na busca pela equidade e conhecimento das causas queer. Internacionalmente, podemos citar o nome de Caitlyn Jenner, 65, atriz, modelo e ex-atleta norte-americana, que em 2015 iniciou o procedimento de adequação de gênero e usa a sua experiência como transexual em prol da causa LGBTQ. Em conhecida entrevista para a revista Vanity Fair realizada no mesmo ano, Caitlyn diz que ao se afirmar como transgênero e passar pela transição ela sente “uma imensa responsabilidade. Tenho uma voz, mas há tantos outros transgêneros que sequer têm voz”.

Em âmbito nacional, principalmente nos últimos cincos anos, temos observado a insurgência de personalidades queer na música popular brasileira. Dentres elas, pode-se pontuar Liniker, 22, compositora e vocalista da banda Liniker e os Caramelows. Destaque na música black brasileira por sua forte voz, Liniker se identifica como uma mulher trans e negra e se destaca pela sua performance nos palcos, utilizando as roupas que lhe fazem bem, e que a sociedade classifica como femininas — como saias e vestidos. Em entrevista para a revista Glamour, em 2017, declarou que sua mãe é uma figura importantíssima para a sua afirmação e que a matriarca “sempre me disse que eu tinha que usar o que quisesse”.

Tem-se, ainda, no Brasil, a figura de Laerte Coutinho, 66, cartunista e char-gista brasileira, considerada uma das artistas referência na área. Em 2010, Laerte se destacou por tornar pública a sua prática do crossdressing — que é o vestir-se com roupas e acessórios que são relacionados ao sexo oposto — identificando-se, logo em seguida, como transgênero. Ativista pela causa LGBTQ no Brasil, em 2012, Laerte fundou, com parceiros, a Associação Brasileira de Transgêneras (ABRAT), que tem como objetivo prestar auxílio às pessoas da letra T do acrônimo. Em 2017, numa produção cinematográfica lançada pela Netflix, intitulada “Laerte-se”, a cartunista conta sua longa trajetória de auto-aceitação como mulher. Em entrevista de mesmo ano ao Brasil de Fato, Laerte conta que foi através de um personagem de uma de suas tirinhas que descobriu sua transgeneridade. “Para mim, é muito claro que se eu não tivesse feito uma tira com o personagem Hugo, que se travestia de forma desconectada, com o compromisso de narrativa humorística, só pelo prazer das coisas mesmo… se ele não tivesse feito isso e não tivesse sido lido e entendido como comportamento trans — e fui alertada e me interessei –, se isso não tivesse acontecido eu provavelmente não teria nem começado a descobrir minha transgeneridade”, declara.

Caitlyn Jenner, Laerte e Liniker têm em comum a identificação de gênero feminina e transgênera. A partir do processo de transição vivenciado por cada uma, e acompanhado pela mídia ao longo dos últimos anos, elas vivenciaram negociações de reconhecimento do próprio gênero, adaptações de diversas ordens e mudanças de perspectivas.
No caso delas, a percepção de si como não-binárias pode (ou não) se dar, em maior ou menor grau, em função das particularidades do processo de transição de cada uma. Liniker, por exemplo, em 2016, atentava para a possibilidade de ser uma mulher com barba e batom, aglutinando em si características físicas e comportamentais não-binárias e politicamente potentes. Com o passar do tempo, a cantora vem apontando para uma identificação maior com o gênero feminino, aproximando-se de uma vivência binária, por assim dizer, mas nem por isso menos queer. O mesmo caminho vem sendo percorrido, ainda há mais tempo, por Caitlyn e Laerte, também mulheres trans, que sugerem uma identificação de gênero binária — embora possam não se reconhecer nesses termos –, que vem contribuindo para mover as estruturas da representatividade sexual na sociedade com seus corpos-políticos.

Mas há ainda indivíduos cujas identidades fogem do binarismo homem — mulher de maneira mais enfática, como as três pessoas entrevistadas para esta reportagem. Sentir-se fora do binarismo estabelecido, masculino — feminino, foi, e ainda é, uma característica em comum entre Sile e El Hana. Desde muito jovens, quando tomaram consciência de si própries e de seus corpos, o encaixe no qual a sociedade produziu para iles não parecia ser o perfeito e, de fato, não o era. A pergunta que todes se fizeram assola milhares de pessoas que ainda não se conhecem em intimidade e, portanto, acabam por questionar: “o que há de errado comigo?”. Certamente, com você, nada. O erro reside em toda uma coletiva que, apenas muito recentemente, busca, em pequenos passos, alguma pluralidade.

ADEPTE DO USO DO ARTIGO neutro — “x” ou, de modo a facilitar a pronuncia, “e” — no final de palavras que até pouco tempo somente eram escritas e/ou pronunciadas ancoradas no binarismo chamo — fêmea, isto é, “o” e “a”, El Hana Filipides de Moreira Filho, 19, explica que não raras vezes tem o seu nome estranhado por terceiros. Muito embora, segundo Filho, as pessoas normalmente acreditem que seu nome melhor nomearia uma mulher do que um homem, Hana assegura que a opinião delas pouco importa. “[…] esse é o meu nome de verdade e, sendo o meu nome de verdade, eu quero, automaticamente, que as pessoas me chamem de El Hana”, afirma.

E, por falar em neutralidade, é bem por aí que Filipides classifica a maneira como se identifica e se enxerga: uma pessoa de gênero neutro. Quanto à essa questão, no entanto, Hana tem algumas ressalvas a fazer. “A minha identidade pessoal, de gênero, ou seja lá qual for, é muito efêmera. Eu estou em constante mudança e sempre satisfeito como eu estou no momento”, declara. “No momento, eu me encontro como uma pessoa de gênero neutro e não gosto que me atribuam trejeitos masculinos ou femininos. Eu tenho trejeitos próprios, que eu me acostumei e que eu considero tão somente meus”, continua.

“Criança veada” desde que se entende por gente, Filipides conta que já na sua primeira infância via muito claramente uma distinção na forma de tratamento que costumava receber das pessoas no seu entorno. Essa diferenciação, afirma, com o passar dos anos, só se potencializou mais e mais. Em virtude da maneira díspar da que normalmente um homem biológico costuma se portar, trajar-se e performar sua sexualidade, El Hana, por vezes, acha incômodo o estranhamento por parte dos outros a respeito da sua aparência. “Às vezes as pessoas chegam pra falar comigo justamente por eu ser diferente, sabe? Mas eu sou uma pessoa normal, como qualquer outra. Eu só tenho um estilo diferente, só tenho um pensamento diferente [do convencional]”, revela Filho.

Maninho, como Filipides pela família costuma ser chamade, contudo, diz que, ainda que tenha sofrido muito quando criança por apresentar trejeitos não convencionais e com isso sido ininterruptamente bullyinado, hoje, no ensino superior, as coisas são diferentes. “[Isso] porque eu conheci pessoas que compartilhavam do mesmo pensamento que eu. Pessoas que eram mais bem resolvidas e entendiam melhor as coisas”, diz. “Então, hoje em dia, eu sou uma pessoa muito feliz, graças à universidade, porque eu tenho mais liberdade. No ambiente acadêmico eu me sinto mais seguro, mais até do que no caminho até ele”, conta x acadêmicx do terceiro período do curso de jornalismo pela Unicap.
De família constituída, boa parte, por parentes cristãos evangélicos e outros entes extremamente homofóbicos, Hana afirma nunca ter tido espaço em ceio familiar para se debater a sua condição sexual e a maneira através da qual se reconhecia enquanto sujeito e fazia existir a sua demasiado particular identidade. Filho teve, portanto, de recorrer a outros ambientes e pessoas para sanar dúvidas e realizar questionamentos a respeito. “[…] gênero e sexualidade foi uma coisa que eu tive que descobrir sozinho: pesquisando, ouvindo pessoas e tentando, ao máximo, adaptar isso ao meu modo de vida”, relata.

Uma vez nete de uma avó diaconisa e sobrinhe de um tio pastor e de uma tia também diaconisa, a igreja naturalmente sempre cenografou, quer direta, quer indiretamente, as vivências, sobretudo infantis, de El Hana. Filipides recorda-se do dia em que fora até o templo no qual seus parentes costumavam adorar o divino de unhas pintadas e a sua tia ter feito um “escândalo”. “Ela começou a falar pra todo mundo que eu tinha espíritos, que eu tinha demônios, que gay ia pro inferno mesmo”, conta Hana. “Daí eu parei de acreditar nisso e, hoje em dia, eu tenho um conceito totalmente diferente do que é Deus”, continua.
X estudante declara, ainda, que a repulsa e o estranhamento de terceiros para consigo parte não tão somente de seus entes homofóbicos e fundamentalistas religiosos, mas, também, em inúmeras situações, das próprias minorias constituintes da sigla LGBTQ. Quanto à resistência à aceitação de pessoas genderqueer mesmo em espaços destinados ao público LGBTQ, Filho diz sentir na pele o desprezo e desvalorização pelos quais usualmente passa. “Eu sinto muito isso quando a gente vai pra baladas e festas, sabe? A gente vê os padrõezinhos lá se pegando e, tipo, ninguém chega pra gente, porque a gente é totalmente diferente”, confessa Filipides. “Às vezes eu chego em baladas LGBTs e os caras ficam olhando pro meus cabelos, pras minhas roupas e ficam ‘Hãn? O que é isso que tá aqui?’ e isso é horrível”, desabafa.

Perguntade sobre como concebe e lida com a afirmação tanto da sua sexualidade quanto da sua identidade de gênero no Brasil, país no qual, historicamente, a heteronormatividade permeia e perpassa relações afetivas e sexuais — inclusive de laços não normativos — e assassina a cada 23 horas, segundo dados da ONG Grupo Gay Bahia (GGB), em 2017, uma pessoa LGBT, Hana conta que acredita, no ato de respirar, fazer política. “Meu corpo é político. Minha opinião é política e tudo o que a gente faz é corruptível, porque as pessoas tentam sempre nos corromper”, afirma. “Quando eu digo que eu não me importo com o que as pessoas vão dizer da minha roupa e tudo mais, eu acho que isso já é um ato político, sabe?”, continua x garote que diz, muito embora ser alvo incessantemente de estranhamentos, quer dentro de casa, quer na rua, deter uma aparência efêmera por não gostar de monotonias.

DEIXANDO PIANINHO
Para além da sua sexualidade, por ser negre, pobre e periféricx, Filipides diz ter sido alvo de inúmeras situações constrangedoras. A mais recente delas aconteceu durante sua ida a uma das lojas da franquia de farmácias PagueMenos existentes no seu bairro — Alto do Mandú, na divisa entre Apipucos e Casa Amarela — comprar cremes de pentear — uma vez em promoção. Ao entrar no estabelecimento com outros dois amigos — Ingrid e Paulo –, dos quais apenas a garota, por ser branca, fugia do estereótipo de “suspeito padrão”, El Hana fora ininterruptamente acompanhade pelo segurança do local pelos corredores da loja. Isso se sucedeu até o momento em que Hana acabou por ir ao caixa pagar pelas mercadorias. Ao sacar da carteira uma nota de R$100,00 (cem reais), o segurança, ao vê-la, “ficou pianinho”.

Apesar dos pesares, x future jornalista crê que contar com o apoio de outras pessoas, no seu caso, negras, e que, de certa forma, destoam da cisheteronormatividade, pode fazer muito bem para a compreensão de problemáticas histórica e sistematicamente constituintes da realidade social brasileira. “Eu não sei se um dia eu vou poder sentir na pele o que uma pessoa cisgênero, heterossexual e de classe média sente. Acho até que nunca”, diz. “Mesmo que a gente morra todos os dias, [espero] que muitos outros LGBTs possam assumir papéis de voz na sociedade e todo mundo perceba que não tem nada mais normal do que ser humano”, continua Filipides, que tem ciência de que é tão somente assim, sendo reconhecide como um ser humano, sem rótulos, que vai poder experienciar, de fato, um mundo digno para todos. “Mas, até lá, essa ideia é apenas uma utopia”, desabafa.

SILE. SE DER UMA BOA REPARADA é o nome Elis ao contrário. É o apelido que Elis Pereira de Lima tem desde que era criança. Agora, com vinte e três anos de idade, abraça o apelido com carinho e o toma como seu nome; se apresenta com ele, e é conhecide assim em seu círculo social. Sile diz que gosta de tal nomenclatura por ela ser neutra, não distinguir entre os gêneros binários pautados pela sociedade, o masculino e o feminino. Com cerca de doze ou treze anos, Sile tomou consciência que, não apenas seu nome era neutro se comparado a um binarismo homem/mulher. Em seu âmago, em tão tenra idade, percebeu que não se encaixava na separação “natural” de coisas que são denominadas para homens e para mulheres: “eu não conseguia me adequar ao grupo, o que não mudou muito hoje em dia”. Esse não “encaixe” no binarismo estabelecido histórico, sócio e culturalmente, no qual Sile não se identifica é conhecido por gender-fluid ou gênero fluído, que traz a ideia da não definição de gênero: nem masculino, nem feminino, mas sim algo que é líquido e amorfo entre os dois conceitos, sem necessidade de definições.

No início, tudo era muito nublado e confuso para Sile, em questão de termos. Sempre soube que não se encaixava nos padrões de gênero estabelecidos, mas não conseguia nomear aquilo que sentia que era. O termo que mais se aproximava de sua vivência era o andrógino — aquele que se comporta imprecisamente, entre o masculino e o feminino ou, ainda, que tem características do sexo oposto –, porém, tal definição parecia ser genérica demais para aquilo que era.

De uns dois anos até o momento, Sile teve a oportunidade de conhecer pessoas que introduziram o termo e o conceito de gender-fluid e tudo pareceu, finalmente, fazer sentido. “No início foi como uma lâmpada que acendeu e eu falei: ‘caramba, é isso! ’. Na minha infância toda eu não tive preferências ‘de menina’ ou ‘de menino’. Eu gostava de tudo e sempre fui muito ative. Isso tudo relacionado a gênero sempre me incomodou no fundo e começou, realmente, a apertar no meu juízo quando eu desenvolvi minhas preferências sexuais. Com o baque da sociedade tudo era super questionável e muito complicado pra mim, mas eu nunca desisti de tentar entender”. Apesar de ter se identificado como gender-fluid, Sile relata que ainda é um desafio para a sociedade aceitar sua identidade; as pessoas costumam relacionar sua figura com uma ‘lésbica masculina’ ou ‘uma garota com trejeitos masculinos’. Mas, sempre que possível Sile tenta esclarecer, de forma simplificada, o que é e a causa pela qual defende. “Não é fácil, sabe? Tem pessoas que entendem, mas nem sempre respeitam. Tem pessoas que se afastam. Tem pessoas que dizem que enlouqueci ou preferem me colocar em um estereótipo qualquer e deixar pra lá”.

A não compreensão da sociedade em torno das questões relacionadas a gênero e sexualidade acaba por dificultar a própria identificação do indivíduo, que, na maioria das vezes, acaba por se encontrar plenamente, em uma idade mais avançada. Como Sile pontua, a discussão sobre tais questões se faz necessária para a amplitude da realidade de tantas pessoas, que, assim como Sile, buscam se encontrar e se afirmar perante a sociedade. “Eu nunca tive dúvidas que eu não era uma menina, só não sabia como trabalhar isso em mim e não tinha ninguém que me ajudasse. Eu sinto que, sabendo quem eu sou hoje, e me aceitando, eu tenho muito mais força para poder lutar”.

QUEER A BORDO
Um exercício diário para aqueles que fogem à heteronormatividade é colocar seu corpo, sua identidade e o seu ser como algo político, que reivindica direitos que são salvaguardados a todos, mas que, por questões de padrões encucados na sociedade, acabam por serem negados e rechaçados aos LGBTQs. Sile diz que tenta se impor, e acha essencial externar o que é, mostrar que existe e que deve ser respeitade. Crer que reprimir situações de preconceito que passaram batidas, por, talvez, serem naturalizadas, acaba por despertar uma inquietação em seu interior: poderia ter argumentado, mostrado seu ponto de vista, explicado que as coisas não funcionam de forma tão estruturalista.
Mais um desafio que vai colocar à prova x próprie Sile é a carreira profissional que ile escolheu: ser comissárie de bordo, uma profissão que, originalmente, reforça um padrão de feminilidade e que lida com essa imagem. Seu desejo de encarar o curso para formação de comissários veio do seu gosto em viajar; largou o antigo emprego e investiu em sua paixão pela aviação. Pretende agora, iniciar o curso para piloto de aeronaves. Já no curso para comissárie, Sile relata que passou por algumas situações adversas, junto com uma garota transexual. “Nós nos apoiamos muito e passamos por algumas adversidades, mas sempre colocando nosso propósito e ajudando um ao outre”, afirma x jovem.

Tal empatia não é muito comum no meio LGBTQ, em relação aos não-binários ou gender-fluid, que compõem a letra Q de Queer. Apesar de Sile dizer que se sente acolhide pelas outras pessoas da sigla, e ter relatado a cumplicidade com sua amiga trans, ainda existem pessoas que não aceitam o não-binarismo. “Existem sim pessoas que meio que não aceitam a nossa identidade, que diz que somos indecisos ou que isso não existe. Não há o reconhecimento como meio LGBTQ. Na verdade, isso tem em todo lugar”, diz. Apesar disso, Sile sempre pontua que, em seu crescimento pessoal, com sua identificação como gender-fluid, pessoas cercadas de amor sempre apareceram para acrescentar em sua vivência e em seu conhecimento sobre si próprie.

Respeito e aceitação foram conceitos que, no meio familiar, inicialmente, foi bem difícil para Siles: a separação de seus pais colocou-x em um espaço de dualidade nos tratamentos, no qual ile relata que com seu pai as coisas funcionavam da forma mais tranquila possível — ele deixava que ile fizesse, falasse e brincasse do que quisesse, sempre houve certa liberdade com o seu jeito de ser. O que é curioso, neste caso, já que a figura paterna é carregada de uma conotação conversadora. Por outro lado, sua mãe, religiosa evangélica fervorosa, mantinha ensinamentos quadrados que seguiam à risca a regra conservadora. “Quando ela começou a perceber certas atitudes minhas, ela me obrigava a fazer coisas que eu não queria”, declara x garote. “Quando eu contestava, ela vinha com chantagens emocionais. Então, ela me levava a igreja religiosamente todas as quartas, quintas e domingos. Com certeza ela já via algo em mim, ela meio que tentava me mudar de alguma forma. E essa era a defesa dela, ela não sabia lidar com isso”, continua. As disputas dentro de casa hoje já não existem, já que Siles mora sozinha. Porém, sempre que aparece a oportunidade no meio familiar, ile procura abordar questões sobre a diversidade de gênero e busca também apresentar pessoas de seu convívio social. “Eu tento impactar mesmo, sabe? Mas tratando de uma forma natural”, conta x future aviadore.
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