Guto Heyerdahl's profile

L'Étranger (Conto)

L'étranger 
- ...foi escrita em mil oitocentos e setenta e alguma coisa. Mas olha o que ela diz.

Ela olhou. As palavras pareciam dizer tudo que eles precisavam ouvir naquele momento triste. Uma bela poesia. Bela e curiosa, pois havia sido escrita simultaneamente em português e francês, por um poeta que se dizia francês mas ninguém sabia exatamente de onde veio.

Albert “L’étranger” Maniquet era um poeta estranho, mesmo para sua estranha época. No fim do século XIX, depois de sua morte, descobriu-se que para cada uma de suas poesias em francês havia um equivalente em português escondido em seu baú. Daí se conjecturou que poderia ser português, daí seu sotaque estranho, mas absolutamente nenhum traço dele jamais foi encontrado em Portugal.

- E você sabe disso tudo como?

Ela perguntou. Seus olhos pareciam diferentes depois de ler a poesia, ela parecia mais viva.

- Sempre gostei da obra dele. Comecei a ler novo, com as versões em português. Depois passei para as francesas. Meu pai tinha todos os livros dele. Ele frequentava até o mesmo café que os impressionistas.

- E o que aconteceu com ele?

- Como assim?

- Você disse que só depois da morte dele acharam as versões em
português, mas como ele morreu?

- Pior que isso é o mais louco. Ele sumiu.

- Como assim - ela parecia meio irritada com o fim não muito
emocionante da história - Ele simplesmente sumiu?

-Simplesmente sumiu.

Mas dessa vez ele falou mais devagar, olhando nos olhos dela,
hipnoticamente, se aproximando e, ainda mais devagar, a beijou. Rapidamente suas mãos encontraram uma a outra, pele
encontrou pele.

Poucas palavras mais foram ditas naquele dia, e a maior parte
delas foi sussurrada na orelha um do outro.

Nesse dia Jonas e Beatriz se reconciliaram depois de meses sem trocar palavra, muito por conta da poesia de Albert Maniquet.

Era o ano de dois mil e quinze, ele tinha vinte e três anos, ela tinha vinte.
Anos se passariam antes que Jonas lesse de novo a poesia de Albert Maniquet, mas eventualmente ele leu.

Aos cinquenta e cinco anos Beatriz encontrou um caroço que não deveria estar ali. Foi mais ou menos nessa época que Jonas se tornou professor pesquisador titular em um grande centro de pesquisas nucleares na Europa.

Enquanto o trabalho de Beatriz era se curar, Jonas garantia o sustento da casa com pesquisas extremamente avançadas em distorções no espaço-tempo.

Era o ano de dois mil e cinquenta, e foi mais ou menos aí que Jonas voltou a ler Albert Maniquet e a tentar esboçar as próprias poesias.

Em mil oitocentos e setenta e quatro, Albert Maniquet ainda tinha dificuldades para se manter. Apesar de suas consideráveis somas de riquezas diversas trazidas para a jornada, Albert nunca se sentiu em casa naquele lugar estranho.

A Paris daquela época parecia tomada por um espírito diferente, mas ele sabia o que era. Em breve os pintores iam aparecer com suas pinceladas em staccato, pintando o que viam ao invés do que os mandavam pintar, celebrando a liberdade como só os franceses sabiam fazer. As pinturas que eles ainda fariam o faziam pensar nela, como poucas coisas eram capazes. Suas cores, as texturas, a forma como eles viam a realidade, era incrível.

E Albert, por mais deslocado da vida que fosse ali, tinha um conhecimento notável de como a realidade realmente funcionava.

Ele parou no conhecido (ao menos para ele) café no número 11 da Grande Rue de Batignolles. Lá estavam os rapazes que ele sempre sonhara conhecer, mesmo que os próprios meninos não fizessem ideia de que isso ainda aconteceria.

Numa mesa no canto Monet conversava com uma moça, possivelmente Berthe Morisot. Em um outro canto, um homem que lembrava muito Renoir conversa com alguém que só poderia ser Camille Pissarro. Eles não sabiam disso, mas mudariam o mundo das artes para sempre. Albert sabia.

Ele entrou no café, calmamente, e se sentou para escrever. Em um meio de pintores, logo chamou atenção e se tornou amigo deles
rapidamente com suas ideias incríveis sobre como deveria ser o futuro da arte.

- Eu te amo muito, Beatriz.

Jonas disse quando soube que, mesmo que o tratamento fosse o melhor possível, ela teria no máximo mais dois ou três anos para viver.

Nessa época Jonas começou a ler suas poesias para ela, algumas delas em francês, como uma homenagem tanto a Maniquet quanto àquela poesia salvadora.

- Você podia ter escrito ela pra mim.

Disse um dia Beatriz entre suspiros. Era verdade. Ele queria ter escrito aquela poesia para ela. Um dia ele escreveria, disse a si mesmo, uma melhor.

O ano era dois mil e cinquenta e três.
Dois mil e dezessete e em uma memória Jonas e Beatriz dançavam na chuva, descalços na grama.

Era dois mil e vinte e ele estava ajoelhado diante dela, um anel de diamantes nas mãos franzinas de estudante de física.
Era dois mil e vinte e um, Beatriz entrava na igreja. Ele nunca a vira tão linda. Casar na igreja havia sido ideia dela, mas ele entendia e, admitiu sorrindo consigo mesmo, nunca estivera tão feliz dentro de uma.

Era dois mil e vinte e nove quando ela contou pra ele a melhor notícia da sua vida. Estava grávida. Ele comemorou como nunca comemorara nada na vida.
Era dois mil e trinta e sete quando Jonas conseguiu o mais alto posto possível no centro de pesquisas. Ela comemorou como nunca e o jovem Albert, de sete anos, sorria mesmo sem entender.

Era dois mil e cinquenta e quatro e ele sabia que ela não tinha muito tempo. Neste mesmo ano ele e sua equipe fizeram avanços que não eram esperados nem para os próximos cem ou duzentos anos, descobrindo como manipular a própria consistência do que formava o espaço-tempo. A aplicação prática ainda era nebulosa, mas claramente era uma área onde havia potencial.

O ano era dois mil e cinquenta e cinco. Em junho Jonas e seu filho Albert, recém graduado em física, comemorariam a maior descoberta da história da física, e o filho agradecia ao pai por tê-lo incluído entre
os autores do estudo. Um Nobel de física antes dos trinte, seu pai disse, e ele sabia que o Nobel viria.

Em outubro, Beatriz ouviu pela última vez uma poesia de Albert “L’étranger” Manique. Quem leu foi Jonas, aquela poesia em francês, que recuperara seu amor tantos anos atrás, servindo agora como despedida. Beatriz esperou até ele acabar de ler e, mesmo sem forças pra falar, disse o quanto amava seu marido e filho com os olhos. E respirou pela última vez.

- E o que eu vou fazer sem você também?
Gritava e chorava Albert ao mesmo tempo enquanto seu pai invadia o laboratório no meio da noite.

- Filho - disse Jonas e, por alguns segundos, ele se sentiu o Jonas de vinte e três anos, reconquistando o amor de sua vida recém- perdido - eu não tenho mais nada aqui. Deixa eu ir, buscar o que eu preciso buscar, tem alguém que eu preciso conhecer. Por favor.
Pai e filho se abraçaram e, num gesto trêmulo, Albert ligou a mais revolucionária descoberta científica de todos os tempos.

Jonas, nascido em mil novecentos e noventa e um, entrou na máquina do tempo, sabendo para onde iria. Seu filho Albert colocou as coordenadas. França, final do século dezenove. Ele conheceria Albert Maniquet e o agradeceria, depois poderia ficar por lá, conhecer outra era, viver outra vida.

Com um aceno de despedida Jonas desapareceu na frente de seu filho, Albert.
Jonas chegou ao ano de mil oitocentos e sessenta e nove, levando todo o ouro que encontrou em casa para sua jornada. Rapidamente trocou o ouro por roupas menos chamativas que um terno do meio do século vinte e um, trocou mais ouro por um lugar pra morar e mais algum por um bom estoque de comida.

Os anos se passaram e, por mais que procurasse, Jonas não encontrava Albert Maniquet.

Apesar de suas consideráveis somas de riquezas diversas trazidas para a jornada, seu ouro estava acabando e ele precisava fazer algo. Em mil oitocentos e setenta e quatro, caminhou pela Grande Rue des Batignolles e adentrou o café no número 11. Lá estavam os futuros impressionistas.

E então ele entendeu tudo. Calmamente e com um sorriso no rosto que só tem quem entendeu como o mundo realmente funciona, Jonas se sentou. Seu francês era bom o suficiente pra passar por
nativo, mesmo que muitos não fossem cair na farsa. Ele pensou em um nome. Seu filho. Seu amado filho teria esse nome.

Um rapaz que parecia Monet veio de um canto do café.

- Prazer, Claude. Você não parece um pintor.

- Não, não sou pintor, mas o que eu sei pode mudar seu mundo. - Aceito, senhor estranho, ter meu mudo mudado por conhecimento. Como posso chamar o senhor?

Jonas pensou mais um pouco.

- Albert. Albert Maniquet. Prazer, Claude.

Naquela noite Jonas se sentou e foi Albert Maniquet. Ele não
escreveria aquela poesia, escreveria uma melhor. E o destino faria o resto.
Seu pai, num futuro distante, teria todos seus livros que impressionariam um adolescente que um dia impressionaria uma menina. E assim Jonas, agora Albert Maniquet, reescreveu todas as suas poesias e deixou as versões em português para serem encontradas.

Um dia, quando parecia que ele finalmente tinha terminado a obra, alguém bateu à sua porta. Seu filho Albert pulou em seus braços, mas era uma versão diferente dele.

- Então, pai, quer dizer que meu nome é o seu nome?

- Como você sabe disso?

Respondeu Jonas, emocionado e assustado.

- Eu vim te observando. Agora nós podemos trazer pessoas de
volta também. Na verdade tudo agora é muito relativo. Me diz, pai. Para onde você quer ir agora?

Jonas, nascido em mil novecentos e noventa e um e seu filho, Albert, nascido em dois mil e trinta. Albert, nascido em dois mil e trinta, morto em -1000 A.C. por uma tribo romana. Jonas, nascido em mil novecentos e noventa e um, morto em 2055, enquanto de longe observava a si mesmo mais jovem velar o grande amor de sua vida, Beatriz.

Fim
--- Para Julia, que inspirou este conto e diversos outros da vida real ---
L'Étranger (Conto)
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