Juliane Bauer's profile

Uma vida que tinha duas vidas

Uma vida que tinha duas vidas
           
           Quando você se muda para morar sozinho, na teoria você não precisaria dar satisfação de tudo que você faz para alguém, porque afinal, você já é adulto e independente. Isso não acontece comigo. Se não aviso que saí do apartamento, cheguei na Ufrgs, sai da Ufrgs, fui ao ballet, fui ao francês, entre outras atividades do meu dia ou semana, minha mãe já acha que morri ou que fui assaltada, mesmo que atrasei a mensagem por apenas meia hora. Ela tem esse comportamento desde que sou pequena e por muito tempo achei que fosse um tipo de proteção, demorei para entender que era um tipo de controle dela em cima de mim. O sentimento de vigilância constante mesmo há quilômetros dela me deixam sufocada.
          Penso que não conheço muito bem a versão dela que não seja “mãe” e talvez seja porque ela mudou quem era para se tornar mãe. Conheço a pessoa que trabalhava todos os dias manhã e tarde e quando chegava em casa, fazia a janta para a família, ajudava eu e minha irmã com tarefas da escola e se sobrava algum tempo ela assistia a televisão. Nos finais de semana, ela e meu pai só saiam de casa se fosse comigo e minha irmã e se ficássemos em casa ela cozinhava pipoca, brincava com a gente e fazia questão de passar todo o seu tempo livre conosco.
          Conforme fomos crescendo deixamos de passar todo o nosso tempo com ela e começamos a passar mais tempo com os amigos, foi aí que vi minha mãe perdida sem saber o que fazer quando não estava conosco, já que meu pai passava todos os dias trabalhando até tarde, mesmo em finais de semana. Toda vez que voltávamos para casa, queria saber tudo o que fizemos, se foi divertido e o que comemos, já quando perguntávamos o que ela tinha feito ela teria dito que foi ao mercado ou ficou em casa assistindo televisão mesmo, minha mãe não tinha companhia para passar seu tempo livre.
          A vida da minha mãe tinha vida, aliás, tinha duas vidas. Minha mãe esquece até hoje de viver uma vida para si, ela não tem amigos, não tem hobbies e o que a deixa feliz é passar tempo comigo e com minha irmã, porém já a vi chorando pelo contrário não acontecer: por ela estar sozinha. Vejo que muitas pessoas acabam deixando de fazer coisas que gostam para ter mais tempo com a pessoa que ama, se acostumam a fazer o que aquela pessoa gosta e perdem a sua essência.
          Pelo menos uma pessoa viveu ou viu alguém próximo viver essa situação de deixar de ser você mesmo para virar uma pessoa que se encaixa mais na vida do outro, tanto para relacionamento familiar, quanto para amizades e namoros. Eu vi minha mãe modificar a vida dela, como parar de se encontrar para tomar mate com as amigas, para encaixar a minha rotina e da minha irmã; eu me vi deixar de ler para jogar “Pokémon Go” para agradar meu ex-namorado, sendo que eu odiava aquele jogo; conheço esposas que deixaram de lado seu único momento de lazer para cuidar das crianças a fim de que o marido pudesse jogar futebol.
          Ás vezes, a pessoa nem vê que está substituindo sua vida pela vida de outra e talvez ao assumir a responsabilidade de ser a mãe, esposa, filho ou avô, ela esqueça quem ela era antes de se tornar responsável por outro alguém. Talvez ela faça isso inconscientemente pelo fato de amar tanto alguém que esqueça de se amar, ou talvez a pessoa pensa que o amor que sente pode ser tão grande que justifique qualquer sacrifício. Pode ser também que ela se encaixe na vida da pessoa amada para não se sentir sozinha e garantir a companhia de alguém, além de que talvez ela não perceber que se perdeu de quem era e que agora precisa aprender a se conhecer, descobrir quem é seu verdadeiro eu.
Uma vida que tinha duas vidas
Published:

Owner

Uma vida que tinha duas vidas

Published: