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Reportagem | Vidas negras também importam em Gravataí

Vidas negras também importam em Gravataí/RS
Manifestantes reuniram-se, no sábado (21), em frente ao Carrefour de Gravataí/RS para protestar contra a morte de João Alberto Silveira Freitas e por mais políticas públicas para a população negra local

Às vésperas do Dia Nacional da Consciência Negra, na quinta-feira (19), João Alberto Silveira Freitas foi espancado e morto na porta de uma loja do supermercado Carrefour, no bairro Passo D’Areia, na zona norte de Porto Alegre.

Beto, como era conhecido, tinha 40 anos, nasceu e cresceu no bairro Humaitá na capital gaúcha, era pai de quatro filhos e torcedor apaixonado do Esporte Clube São José. Esse não foi um caso isolado. Em 2018, segundo dados divulgados pelo Atlas da Violência, 75,7% dos homicídios no Brasil foram de pessoas negras.

Diante desse cenário, grupos antirracistas em diversas cidades do Rio Grande do Sul realizaram manifestações em repúdio ao acontecimento. Gravataí, município da região metropolitana da capital gaúcha, também foi palco de protestos contra a violência sofrida pela população negra local.

Partidos políticos, comunidades quilombolas gravataienses e militantes da causa reuniram-se, no sábado (21), no Parcão e marcharam rumo à unidade do Carrefour na cidade. Essa foi a primeira manifestação antirracista realizada em Gravataí.

Uma das organizadoras da manifestação, Laila Otaki, integra o quilombo Manuel Barbosa. Segundo ela, o protesto foi organizado por meio das redes sociais e já tinham em mente como ele deveria ser. “Combinamos desde o início que a manifestação seria pacífica”, explica Laila.

Esse era um dos receio de todos, a violência, pois estavam presente algumas crianças e bebês de colo. Durante todo o período em que os manifestante permaneceram na frente do hipermercado, a brigada militar estava à espreita, observando. Apesar do ato ter sido pacifico, isso pode ter afetado o número de participantes. “Sim tínhamos medo. Aliás eu penso que muitas pessoas que gostariam de ir não foram com receio de confrontos”, relata a quilombola.

A princípio, essa não era a atividade principal do Dia da Consciência Negra de 2020. Laila conta que os preparativos para a data eram bem diferentes. “Seria um dia de palestras, homenagens e vídeos. Mas, não imaginávamos que novamente uma equipe despreparada do Carrefour faria uma atrocidade dessas”, lembra Laila.

Alan Camargo de 28 anos, mais conhecido como Gordo Alan, é militante da cultura e recentemente concorreu a vice-prefeito de Gravataí pelo partido do PSOL. Para ele, a manifestação terá um grande impacto entre a população. “Acho que vai mudar bastante coisa, é um marco na história que tanta gente tenha vindo para a rua e se organizado com as suas bandeiras mesmo”, disse Gordo Alan.

Otaki também acredita que haverá mudanças na cidade, a partir dos atos do sábado (19). Porém, ela afirma que ainda há questões que precisam ser revistas. “Infelizmente a maioria das reações e comentários nas redes sociais foram negativos. É sim uma cidade ainda muito racista”, lamenta Laila.

Entre os manifestantes, Bibiana Rocha, de 20 anos e estudante de Letras da UFRGS explica como é a relação da cidade com a negritude gravataiense. “Nem temos uma secretária de antirracismo, acredito que políticas afirmativas e inclusivas precisam ser feitas”, conta Bibiana.

Compartilhando da mesma opinião, Alan acredita que isso ocorra pelo fato de não existir uma política pública da cultura negra na cidade para fazer a negritude ter orgulho. “Sempre ouvimos que ‘Gravataí é açoriana, tem CTG e é europeia do Rio Grande do Sul’. No máximo falam que os índios criaram a cidade. Sabemos que não é assim. Quem anda na rua da cidade sabe que não é”. disse Gordo Alan.

O Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (COMPIR) foi estabelecido em 2016, por meio da Lei Municipal n° 380. O objetivo da entidade é promover seminários e atividades específicas sobre a saúde da população negra de Gravataí. De acordo com Ana Maria Rodrigues dos Santos, presidente do COMPIR, o enfrentamento ao racismo será maior depois da morte de Beto. “Não só a população ficará mais atenta, mas também as instituições no que diz respeito a ações de combate ao racismo e a violência”, explica Ana.

A presidente do COMPIR destaca que o conselho apoia sim o protesto que ocorreu em frente ao Carrefour de Gravataí. “Os protestos antirracistas em Gravataí vêm nos mostrar que a sociedade quer uma resposta a toda violência que vem sofrendo”, afirma a presidente.

Apesar disso, a atuação do COMPIR não é algo visto com bons olhos pelos manifestantes. Bibiana não crê que a cidade tem noção da existência desse conselho e, segundo a estudante, há um motivo bem claro para essa questão. “O Conselho da Saúde Negra (COMPIR) é pouco divulgado porque nosso Governo tem vergonha de divulgar esse tipo de programa”, acusa Bibiana.

Laila também não acredita que o Conselho seja expressivo o suficiente na cidade para atender as demandas da população negra gravataiense. Entretanto, a ideia é que essa perspectiva mude. “Os conselhos do povo negro não são atuantes na nossa cidade, infelizmente. Mas, estamos dispostos a mudar esta realidade”, afirma Laila.

Tais constatações podem estar relacionadas a um caso de racismo que ocorreu na cidade em abril desse ano e teve repercussão nacional. Everaldo da Silva Fonseca, de 62 anos sofreu agressões física e verbal por funcionários do Hospital Dom João Becker, dentro das dependências da instituição. O motivo alegado foi um suposto roubo de celular que, mais tarde, foi encontrado. Fonseca estava acompanhando a esposa, Maria Gonçalves, internada com problemas no fígado, e que, segundo ele, sofreu uma parada cardíaca após vê-lo ser espancado.

De acordo com Ana, o COMPIR se posicionou junto à comunidade através de carta de posicionamento, nas redes sociais e solicitou à Secretaria Municipal de Saúde de Gravataí sugerir ao Hospital Dom João Becker que fossem feitas formações sobre o “Combate ao racismo institucional” entre seus profissionais de saúde e funcionários.”O que tem sido feito pelo Comitê de Saúde da População Negra, junto ao hospital, são propostas de formações e atividades que estão sendo realizadas para reeducação de seus profissionais no atendimento à população negra”, afirma a presidente.

A depender dos manifestantes, que lutam pelo fim do racismo estrutural em Gravataí, a comunidade negra da cidade terá cada vez mais espaço e voz. O ponta pé inicial para a revolução foi o protesto do sábado (21), de acordo com os militantes, será o primeiro de muitos. Gordo Alan acredita que isso será essencial para mudança acontecer. “Nossa geração está com ‘sangue nos olhos’ e não irá se enfraquecer. Seremos uma pedra no sapato deles mesmo. Vamos nos organizar para seguir com esse movimento na cidade”, disse Alan.
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